quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Estratégia soviética

Eu percorria toda aquela penugem do relevo dela; os dois planaltos simétricos e uniformemente contraídos por botões firmes, a planície abaixo dos planaltos levando num rastro muscular até onde outro botão afundava um pouco abaixo do centro da planície. Minhas mãos abriam as palmas como se segurassem uma massa de argila e modelassem as curvas e declives de toda aquela geografia. E eu continuava procurando, orientado pela bússola tátil, as coordenadas da rosa dos ventos dela, onde será, eu pensava, no meio de tanta localização, onde será que eu encontro ela?...

os invasores nobres


Eles estão ali, no interior da fechadura. Estão na rachadura dessas paredes, esses insetos, esses aracnídeos, essas espécies todas, rastejam por trás das caixas de papelão no canto do quarto, corroem esse armário e nadam na poeira das gavetas. Eles se multiplicam, eles se expandem nos alicerces, me observam trocar de roupa e acompanham minha insônia. Às vezes sem querer a gente se encontra, e nesses desencontros eu retiro eles daqui, imagina só, invadindo meu quarto assim.
Na verdade eu nem do tempo direito pra eles dizerem educadamente pra eu me retirar, por favor, está atrapalhando o convívio e harmonia da comunidade. E então eles agradeceriam, “muito obrigado”.

Fubá de deus


Talvez eu realmente não saiba o que é de fato respirar. É muito provável que eu simplesmente respire e cumpra essa tarefa constantemente sem nem ao menos senti-la; é sim, bem provável de eu nunca ter me visto, claro que é, eu nunca ter me olhado no espelho no ângulo em que as pessoas mais me notam. É bem provável de eu nunca ter percebido que todas as manhãs alguém me nota no caminho da escola, provável também de eu nunca ter notado ninguém de verdade. A probabilidade de eu nunca ter gostado de alguém sem que meu ego esteja no meio disso tudo é, dona Neusa, muito grande.
Mas vou te dizer, posso não enxergar tudo isso, mas dona Neusa, eu reconheço esse seu bolo de fubá. Eu sinto ele, degusto ele e sinto ele se dissolver nas paredes da minha boca como se fosse um beijo de deus. Olha, uma delicia, a senhora ta de parabéns, viu.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O romance das bambinas em quatro partes

I
Eram três cachorros numa casa de três filhas. Naturalmente, uma cuidava de cada um, seu respectivo, pela idade. Mas a irmã mais velha já não morava mais na casa, de forma que só voltava pra visitar os pais e colocar o assunto em dia com as demais irmãs. De vez em quando de manhã fazia carícias no cachorro mais velho.
Um dia o cachorro mais velho começou a mancar, mas era apenas mal jeito na patinha traseira. Era o que elas diziam.
II
A irmã mais velha começou a namorar e demorar mais para voltar e as duas irmãs mais novas ficavam um pouco aborrecidas com isso.
Os cachorros mais novos também ficaram um pouco aborrecidos com as patinhas tortas do mais velho, já que não podiam brincar mais.
O cachorro mais velho mancava cada vez mais, e daí, de repente, seu pêlo começou a cair. Seu pêlo começou a cair e surgiram cicatrizes e feridas no seu corpinho peludo e diminuto. Ele foi diminuindo, não latia mais, ficava quietinho atrás do carro. Os demais cachorros tomaram a frente da casa de forma que o mais velho não tinha mais espaço.
As irmãs mais novas achavam que os outros cachorros estavam maltratando o mais velho. Mas a irmã mais velha não achava, pra falar a verdade, ela não achava muita coisa.
III
Um dia a irmã mais velha foi sair pra ver seu namorado e sem querer acabou atropelando o cachorro mais velho. Então ele morreu.
IV
As irmãs mais novas culparam a mais velha daquele assassinato todo. Mas irmã mais velha, em defesa, disse que foram os cachorros mais novos.
Os cachorros mais novos somente sentiram falta do mais velho quando não puderam mais brigar para pegar os restos de ração na vasilha do mais velho, porque depois disso, a vasilha permaneceu vazia, só se enchia com água quando chovia e esvaziava novamente, quando fazia sol.