sexta-feira, 1 de agosto de 2014

anticorpos


Lembro do meu primeiro amor
Ele era lindo
Então nos houve um colapso eu e ele
Nos tocamos
Nos trocamos
Do nosso contato uma parte dele ficou em mim e uma parte de mim foi com ele por entre as pernas
Minha textura permaneceu nas suas mãos
Nas pontas dos dedos
Eu ainda viscava
E naquele coração juvenil sei que me alojei como um musgo
Lembro de cheirar as pontas da manga da minha jaqueta
Tinha o cheiro dele
Lembro de tomar banho e de sentir que não escorria ele com água
Mas eu mesma
O que ele tinha me mudado ia embora
Era um amor tão lindo
Era tão doentio
Às vezes ainda recaio
sucumbo  a uma febre típica dele
E tantos outros medicamentos eu tomei
E me adoeci de tantas outras epidemias
Mas ah, o primeiro amor
Ele é irrealizável,
E tão só incurável.

terça-feira, 3 de junho de 2014

A flor hermafrodita

O encontro amoroso é um acidente
E não destino
Talvez fortuna
Mas não destino traçado
Ele é planejado mas é um acidente
que não é agendado
E se ele não ocorrer você vai continuar sendo a mesma
Com seus frutos bem amadurecidos e frustrados
Sem boca alguma para morder.
Se não provam os outros,
eles caem aos seus pés
e te alimentam.
– caem aos seus pés
e te fortalecem –
Porque a sua solidão te faz só,
Te concebe ser uma unidade plena,
inteira de si,
Ela vai polir suas arestas e te deixar lisa
Homogênea,
ainda mais bela
pro novo ciclo.
Pois aí vem uma nova estação:
e essa é sempre destino.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

uma carta

                                                                               

                                                             João Pessoa, 28 de dezembro de 2013


Queridx A.


Prometi à minha orientadora que leria as cartas trocadas entre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro antes do dia primeiro do próximo ano; no entanto, fiquei a vaguear vários dias, o que de certo não me queixo, acho que realmente precisava… Mas eis que agora corro contra o tempo, são muitas as cartas e estou ainda entre as primeiras. A relevância de te falar isso, calma queridx amigx, logo explicarei.
Minhas primeiras leituras das correspondências confesso que as achei desagradáveis; Pessoa e Sá-Carneiro eram poetas geniais, no entanto pareciam – pelas pistas das cartas de Sá-Carneiro ao Pessoa – que o sabiam demais; sabiam que eram bons, e por isso mesmo não dedicavam sua vida à nenhuma outra atividade que senão falar de si mesmos e de suas obras.
No entanto, enquanto avançava nas leituras, fui percebendo o que de fato significavam aquelas correspondências, a sensibilidade daquelas palavras.
Sá-Carneiro dedicava-se muito às cartas, escrevia com um intervalo de dois dias ao Fernando Pessoa e sempre pedia que o respondesse o mais rápido possível.
As cartas, muito além de serem apenas material de análise literária e um grande suporte para compreender a visão dos modernos com relação ao seu tempo contemporâneo, são acima de tudo, correspondências pessoais: ali se configura o único veículo de comunicação entre dois grandes amigos. Vejo Sá-Carneiro, inseguro, pedindo a opinião de Pessoa, a dizê-lo coisas banais da vida, sua indisposição, a felicidade de pequenas coisas, as suas saudades.
Hoje, lavando a louça e pensando nas cartas, fiquei emocionada. Como é bom ter um amigo a quem podemos falar! Digo falar do que nos mais importa. A eles, o que mais importava era a poesia: pela poesia viviam, por ela morreram e era ela inclusive que os unia.
Pensei em você… Gostaria de comentar a alguém sobre as cartas, sabe? Mas sei que não é bem muito do interesse do pessoal daqui.
Sinto sua falta. De conversarmos ao pé da porta. Você sempre se interessava… E eu me interessava pelas suas coisas também. Acho lindo o ultimo verso que Pessoa fez num poema pro Sá-Carneiro:

O amigo como esse que ao falar amamos

Sempre penso em você quando leio esse verso. Quando nos conhecemos, eu dizia aos meus amigos que tínhamos o mesmo coração. Ainda acho isso, mas hoje acredito que nossos corações possuem paixões diferentes.
Me sinto sozinha por aqui também. Gosto de ficar no mar suspensa com os olhos fechados, as ondas me levantando e descendo… Como se eu fosse o mar também.
A distância que tenho em mim do sudeste ora me faz sentir que desapareci. Sei que estou sumindo, realmente. Acredito que estou ranzinza, A.
Esse ano para mim foi regido pelo signo de virgem, era um ano de limpeza e purificação. Acredito que me limpei de coisas que já não me são mais necessárias, me retrai, isolei, não me arrependo, me fez bem, mas é claro, tudo tem uma conseqüência.
Me sinto menos procurada… Quando você deixa de se importar com as pessoas elas certamente deixam de se importar com você.
Fiquei triste com isso… Tenho a sensação de que sou tão vã, qualquer hora, em qualquer ventania, desapareço.
Um dia x P. me disse que o que nos fazia existir era a força da memória e da saudade. O morto pode estar morto, mas só deixa de existir quando ninguém mais o lembra.
Seria possível, então, alguém já não mais lembrado desaparecer ainda em vida?
Bom, se não te chatear, me agradaria bastante um retorno seu.  

Um abraço inteiro desta sua saudosa amiga,
                                                                                   M.

domingo, 27 de outubro de 2013

Em um dia quente de inverno



Desci do ônibus
com meu vestido desajustado
atravessei a rua
com os olhos alisando
o chão
despercebida, sem querer te mirei
no ponto de ônibus
me olhava ou sorria
não sei
sei que passei triste,
talvez cansada,
e me fui para o outro lado
ajeitando em mim
esse meu vestido
desajustado
como se não te visse,
ou te tivesse,
vestido

quinta-feira, 7 de julho de 2011

texto sem título


O amor veio pra cá como algo triste.
Ele me limitou a somente amar
e então eu somente te amava
e tudo foi virando você e você foi se tornando o tudo de cada coisa
Eu me tornei por você e os outros estavam ali só pra lembrar que você não estava
O meu corpo foi sendo um molde pra sua chegada
Os meus cabelos só cheiravam a você
E quando eu me dei por mim você ia embora
E eu deixei de existir por não estar mais em nenhum lugar
E um amor perdido por aí
sem ter o que amar.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Reflorestamento do tédio


Eu tenho a leve impressão de que às vezes, enquanto e durante o tempo em que meus olhos se perdem na brancura do teto com o limite sujo da parede, que ao meu lado, embaixo e em todo o meu redor brotam plantas, ramos que se expandem pelos móveis e inclusive se apoiam nos meus pés esticados no comprimento da cama. E eu continuo pensando e roendo as unhas, meus cabelos crescem e brotam juntamente ao habitat e cá continuo, as unhas vão alongando e o meu corpo depilado já começa a florescer outra vez e ainda estou aqui, as unhas pretas, o quarto amarelado, uma trepadeira avançando já pelo corredor e galhos tomando sol sob a janela, gramíneas colorindo o assoalho de verde e minuciosas flores aqui e ali, tímidas e murchas.
Então quando eu suspendo a cabeça pra dar uma bisbilhotada ao meu redor, eu chego à conclusão de que eu sou a rainha da floresta coroada por várias margaridas costuradas em ramos e raízes. Essa sou eu, a rainha da floresta. 
Espera, acho que não era isso o que eu queria dizer.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Estratégia soviética

Eu percorria toda aquela penugem do relevo dela; os dois planaltos simétricos e uniformemente contraídos por botões firmes, a planície abaixo dos planaltos levando num rastro muscular até onde outro botão afundava um pouco abaixo do centro da planície. Minhas mãos abriam as palmas como se segurassem uma massa de argila e modelassem as curvas e declives de toda aquela geografia. E eu continuava procurando, orientado pela bússola tátil, as coordenadas da rosa dos ventos dela, onde será, eu pensava, no meio de tanta localização, onde será que eu encontro ela?...