quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Espuma vermelha




Nos últimos dias Maria andou esquisita. Zanzava pela casa aos suspiros, movimentando as pernas num gesto lento, como se as solas nuas dos pés beijassem o assoalho a cada passo quente pelo corredor.
Alisava a curva dos seios com a mão; fechava os olhos e mordia os lábios, se perdendo numa de suas ilusões enquanto dava impulsos com os dedos dos pés no chão, um vai-e-vem sutil no balanço da rede, acabava por se ninar.
Estendia os lençóis brancos no varal enquanto o vento a envolvia, e o vestido escarlate refletia ao sol um vermelho vivo, como se refletisse o calor interno de seu corpo.
Suas mãos deslizavam nos objetos da casa, paredes, percorriam curvas imaginárias formando serpentes invisíveis no ar. Prendia os cachos num laço frouxo no alto da cabeça e deixava algumas mechas desobedientes caírem sobre o rosto e por cima da nuca. Suava flores, sorria nuvens.
O marido não entendia. Falava com ela e ela escutava somente zunidos. Respondia em frases monossilábicas, com um ar tão natural, como se nada lhe importasse mais. Deitavam juntos e ele não sentia a presença dela por perto, como se Maria percorresse os cômodos vazios da casa enquanto ele apertava sua mão. Tomava banhos regados de cantigas e não se incomodava com a presença do marido em casa. Ele ali, aqui, ou lá, tanto fazia, sua imagem na poltrona lendo jornal ou no pé da mesa exigindo um café mais forte já era uma preocupação descartada para Maria.
Ela continuava a ferver água e enxugando os dedos no avental, olhava pela janela, quanto verde lá fora!... Verde, verde, azul no céu, algodão se desfazendo... Maria ficava imaginando que tocar na superfície das nuvens deveria ser a mesma sensação que sentir o limite da água e da espuma em banho de banheira. A espuma leve, não se misturava com a água de jeito nenhum. Nuvem também deve ser assim, ela pensava. Leve demais pra se misturar com a gente.
Um dia o marido chegou do trabalho e chamou por ela. Ninguém respondia. Foi em direção a cozinha e cortou um pedaço de bolo em cima da mesa. Ainda mastigando, ele gritava “Maria!” e ninguém, nada, nem mesmo um burburinho correspondia seu chamado. Andou pelo corredor chamando, olhando cada quarto, mas nada dela. Em cima da cama, somente o avental.
Da janela do quarto pôde enxergar a silhueta do corpo dela despido de qualquer pano se movimentando para longe, cada vez mais longe, os lençóis ora ou outra se sobrepunham sobre sua sombra, um verde imenso mais pra frente, mais além somente azul, azul e nuvens. Ela ia embora, Maria ia embora entre passos arrastados, entre o movimento das mãos roçando as coxas, entre o vento que brincava com o cabelo, arrepiava a penugem do corpo e contraia o broto dos seios.
Leve demais para se misturar com gente, ela pensava com os olhos virados para o céu, era leve demais.

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