terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Insônia no lado direito



Eu sou solteiro, mas comprei uma cama de casal. O meu quarto – de solteiro – agora é preenchido por um colchão gigantesco (para casal). Quando eu me deito fico em dúvida: direito ou esquerdo? Costumava sempre esticar o corpo no lado esquerdo, mas daí o direito ficava ali, frio, frio, e era como se o calor do meu corpo – no lado esquerdo – fosse menor que o frio do lado direito, e a ausência do lado direito invadia o meu lado esquerdo, o meu calor se esfriava (ou será que se distribuía, numa tentativa de equilíbrio térmico?) e a minha cama de casal inteira congelava embaixo de mim.
A minha roupa de cama (para casal) não possuía nenhum cheiro feminino ou fios de cabelo longo. Nenhuma mulher lavava meus cobertores (de casal). Eu levava numa lavanderia as quartas e borrifava um perfume de mulher no lado direito quando esticava os lençóis por cima do colchão. Quem sabe assim ele esquenta, eu pensava. Mas não esquentava.
O lado direito parecia maior. O lado direito era maior. O lado direito da minha cama (de casal) era mais largo, era mais volumoso, era abandonado. O lado direito sempre estava esticado, e o lado direito permanecia intocável com seu cheiro de sabão em pó e amaciante. O lado direito da minha cama de casal começou a me incomodar.
No início eu esquecia xícaras de chá e relatórios para ler antes de dormir. Um livro de auto-ajuda no canto mais embaixo, revistas, salgadinhos, meias, gravatas, canetas abaixo do travesseiro, pastas, réguas, telefone, celular, laptop, o que fosse cabendo até o cheiro do lado feder a amendoim mofado, meias molhadas, chamadas não atendidas e conhecimento eletrônico inútil. O lado direito da minha cama (de casal, não se esqueça) foi ficando cheio, foi se enchendo de mim mesmo, foi se completando pela minha desorganização afetuosa e eu, comigo mesmo, dormia quentinho e aconchegante embrulhado por um cobertor – de casal, claro – que me envolvia e era coberto, no lado direito, pelo meu calor desleixado. E a cama de casal todinha ficava cheia de mim.
Um dia o lado direito começou a se expandir. Não eram mais somente xícaras; garrafas térmicas, no princípio, ficavam ali caso o café acabasse na minha caneca, depois retornavam à cozinha. Mas daí eu esquecia elas no lado direito e adormecia. Minhas bolsas se encaixavam nos vãos ainda vazios do lado direito, meus gráficos, as inúmeras canetas perdidas nas profundezas do lençol do lado direito, tudo foi completando o lado direito de modo que visualizar a minha cama de casal não era mais tão simples assim, não era mais uma cama de casal, era o lado direito, e o lado direito foi invadindo tudo, cada pedacinho do esquerdo agora era um pouco direito, então não existia mais nada além do domínio direito, nada mais, não havia mais coberta nem travesseiro para mim. O lado direito era um casal sozinho.
Durante um tempo, enquanto eu repensava sobre a situação de perda total de um território do meu lar, fui me ajeitando e acomodando durante semanas naquele sofá limitado em que meus pés ficavam para fora. Ficava refazendo na cabeça, durante a noite, como que o lado direito agiu durante seu golpe silencioso de triunfo sobre o quarto; geralmente a insônia vinha massagear meus pés congelados. Eu dormia mal, eu não dormia.
O silêncio da sala começou a me penetrar e eu me sentia invadido pela ausência de som. A TV passou a madrugar comigo, mas era tão entediante, poucos canais, ficava rodeando e voltando sempre para os meus programas, o mesmo burburinho. Nada de mais.
E então eu comprei o pacote família na TV a cabo. E eu, divorciado com a cama de casal, mudava os meus canais, todos os meus canais do pacote família, e a voz da TV me completava de modo espontâneo. Minha televisão companheira, meus sussurros do pacote família, meu lado direito sonoramente febril. Meu pacote, minha programação (em família, por favor).

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