sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Osvaldo Faria, último ato.



Então tudo fez sentido. Os tijolos de memória foram se desembalando e desfazendo, e ele foi conseguindo sentir as explosões sinestésicas de nostalgia pelo corpo. Ficou um tempo encarando o armário aberto, as gavetas fechadas, os casacos no canto. Daniel se afastou uns dois passos, parou. Foi até a janela e deixou a luz do sol entrar pela persiana. Voltou ao armário. Olhou em volta, sem saber ao certo o que fazer. Aproximou-se do armário, passou a mão na sua madeira rústica. Virou de costas e sentou ali dentro, por baixo dos vestidos e camisas. O cheiro dos tecidos apertava ainda mais o seu retrocesso crônico. Dobrou as pernas, apertando-as contra a barriga, se escondeu ali dentro. O vão entre as portas deixava um feixe de luz entrar e iluminar somente um fio simétrico escorregando no seu rosto.
Lembrava de quando ouvia as pessoas lá fora gritarem seu nome, e ele se negava a responder, às vezes por preguiça, às vezes pra gerar uma certa preocupação, sentir que causava mistério. Ouvia as portas rangerem, os passos andarem incertos entre os corredores, a imagem das irmãs correndo em vultos no seu campo visual reduzido numa linha entre as portas do armário. Passava os dedos nas dobradiças internas do móvel, sentia fiapos, pedaços descascados. A madeira escura em contraste com a luz.
Uma sensação instabilidade crônica sugou de repente as suas idéias e pesou em todo o seu corpo físico, parecia mais pesado, mais próximo ao calor do chão, era aconchegante estar de volta, estar de volta com uma parte que ele não era mais.
Daniel mergulhou a mão no bolso e apanhou o maço. Pensou em acender um cigarro, mas achou que seria um ato ofensivo em respeito à sua infância e juventude. Mas em seguida logo veio um dane-se sussurrado pelo movimento dos lábios, acendeu um fósforo, encostou no cigarro e tragou profundamente. Pensou então que talvez quando tivesse na casa dos quarenta e voltasse ali, se lembraria da época em que o câncer não causava tanta preocupação. Ah, nem um pouco. Soltou a fumaça pela boca. Deixa passar, ele pensava, deixa o tempo passar, e ele ia passando, passando aos poucos, aos pingos de vento, às planícies febris de memória infantil, ia passando, impregnando o cigarro nos casacos e tecidos suaves, as camisolas da falecida e às cartas guardadas nos bolsos dos paletós paternos.

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